Notas Dobradas

A questão é que para quem se aproveita do cinema, para quem se alimenta dele no dia-a-dia não pode deixar de o referir. Terá sido provavelmente “The Sting” o primeiro, mas foi, sem dúvida, “The Color of Money” que me atingiu com mais força, aos meus 12 anos, levado pelas mãos dos meus pais, ao cinema das Amoreiras (lembro-me, ainda hoje da sala, do lugar, do cheiro, da sensação de ter ouvido a voz de Scorsese naquela narração inicial). Lembro-me que quando saiu em VHS o vi repetidamente todos os dias, durante um Verão inteiro. Lembro-me de andar com um maço de notas dobradas tal como ele (Eddie…Fast Eddie) carregava sempre no bolso. E o gozo que me dava tentando, lentamente, imitar a calma e o nível da personagem, pegando nas notas, escolhendo uma delas para pagar as minhas gomas (os filmes fazem-nos isso). O filme que me levou depois a ver “the Hustler”, uma das interpretações mais “escavadas” por ele. Onde ele vai mais além. Porque a sobriedade e equilíbrio das suas interpretações distinguiram-no de muitos outros pares como Brando, James Dean, actores dependentes do sensorial de Stanilavsky (recém-chegado a NY). Brando sempre será para mim o monstro do cinema. Pela forma como arriscava, como, sem pudor nem medo abria janelas nas suas representações como nunca ninguém conseguiu abrir. Mas ele, sem necessitar de usar esse extremo chegava lá. Com uma inatingível generosidade e verdade. De olhares (e o mérito não é apenas do azul transparente) e de, por vezes, silêncios que dizem mais do que mil palavras, expressavam mais do que um milhão de emoções, conseguindo perceber que pensamentos e tormentos correm dentro da cabeça dele (como em “Cat on a Hot Tin Roof” com Liz Taylor). Silêncios e olhares maiores que carreiras de muitos outros actores. E eu admiro-o por isso. Por nunca ter precisado de se servir do Método dessa forma. Raríssimos são aqueles que conseguem chegar lá sem o utilizar. É necessário ter um “it”, um carisma muito poderoso. Mas esse equilíbrio existia não só no plateau como também na vida. Sempre fora daquele limbo existente entre o cinema e a realidade onde muitos dos actores acabam por comprar terreno. Era generoso sem necessidade de o exibir. Esteve casado durante 50 anos. Gostava de carros rápidos. Da simplicidade. Da verdade das palavras nas poucas entrevistas que dava. No humor de bom rebelde mantido até ao fim. Bonito por fora, mas mais por dentro, por toda a genuinidade crua das características humanas (das boas) que carregava, fosse a representar ou a viver. Sei que não escrevi nada que ainda não fosse dito. Mesmo assim. É reconfortante e inspirador saber que existem pessoas assim. Sim, porque tu vives. Seja nos teus filmes que vejo repetidamente, seja naquele maço de notas. Para sempre. Paul Newman.

Miguel Meneses