Mobilidade Suave

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A maioria das pessoas já terá reparado no facto de a maioria dos ciclistas urbanos não cumprir sempre as regras legais de trânsito. É habitual observar-se utilizadores de bicicleta a transgredir sinais vermelhos, a percorrer ruas em sentido proibido, ou a realizar viragens não permitidas. Diversos utilizadores de outros modos de transporte ficam indignados com este comportamento. Não existe ciclista infrator que não tenha já ouvido algum protesto, gestual, verbal ou na forma de buzinadela. O descontentamento latente é ainda mais vasto; a maioria dos cidadãos descontentes com aquele tipo de actos prefere não se manifestar, guardando o sentimento para si próprio. Ficam assim os ciclistas urbanos mal vistos entre boa parte das pessoas. São, por vezes, generalizadamente conotados como pessoas pouco respeitadoras das regras da sociedade, fundamentalistas do ambiente, anarquistas ou outras classificações de estilo. Será assim?

Para fazer uma avaliação moral do não cumprimento de algumas regras legais, por parte dos ciclistas, é útil dar um passo atrás e ter em conta a razão fundamental da existência de regras de trânsito: a segurança. Se recuarmos apenas duas gerações, verificamos que, à altura, praticamente não existiam semáforos. Recuando mais um pouco, não havia regras de trânsito. A inexistência dessas regras não se devia necessariamente ao facto de nos encontrarmos num estado civilizacional menos avançado, mas simplesmente à não necessidade delas. Os acidentes graves nas deslocações das pessoas não aconteciam. Choques entre carroças, cavalos, pessoas, ou bicicletas, eram raros e, quando ocorriam, causavam normalmente não mais do que uns beliscões.

Existem dois fatores na mobilidade que colocam em risco grave a segurança: a massa e a velocidade. Com o advento do automóvel e das mortes e outros acidentes graves que a sua utilização despoletou, foram criadas e proliferadas as regras de trânsito. Efetivamente foi o surgimento de veículos pesados e rápidos que trouxe a necessidade de regular o movimento das pessoas. As regras quanto à forma como nos deveríamos deslocar tornaram-se, assim, banais, ao fim de poucas décadas.

A moral vigente relativamente ao respeito pelas regras de trânsito é diferente conforme o modo de deslocação que se utiliza. É, por exemplo, moralmente inaceitável para a maioria dos cidadãos ver um automóvel a ultrapassar um sinal vermelho, mesmo em situações em que o risco seja aparentemente inexistente. Aos peões não se aplica a mesma moral. É aceitável, para praticamente qualquer um, ver o peão atravessar com o sinal vermelho, desde que não existam veículos na estrada em vias de passar por ali. Ainda que esta diferenciação de julgamento moral ocorra quase inconscientemente, as razões da sua existência são simples. Se for imprudente, um peão dificilmente causará um dado grave a alguém, à exceção dele próprio. Não só tem um incentivo extremamente forte para ser prudente (egoisticamente falando) a fim de preservar a sua própria vida, como, no caso de ser imprudente, isso acarreta um risco menor para terceiros.

A aplicação à bicicleta de princípio moral análogo parece ser evidente. Uma bicicleta e o seu passageiro têm uma massa cerca de 20 vezes inferior à de um automóvel. Por outro lado a bicicleta anda normalmente a velocidade, digamos, 3 vezes inferior à de um automóvel. Nestas circunstâncias, a energia do automóvel em movimento é cerca de 200 vezes superior à da bicicleta mais o seu passageiro. Os riscos de danos graves em caso de acidente não devem, portanto, ser colocadas em patamares equivalentes. Legalmente, não é permitido a um ciclista passar um vermelho. Moralmente, pode ser aceitável.

É curioso a este respeito verificar o que acontece em países onde a bicicleta é encarada massivamente como um modo de transporte utilitário: aquilo que é legalmente proibido em Portugal é, em muitos casos, perfeitamente legal noutros sítios. Em países como a Holanda, a Dinamarca, a Suécia, a Alemanha, a França e outros, é permitido, em diversas circunstâncias, passar sinais vermelhos, atravessar ruas em sentido inverso ou realizar viragens onde tal não é permitido ao automóvel. Também é comum nestes países ver ciclistas a infringir algumas regras de trânsito, sem que isso seja especialmente encarado pelos concidadãos como algo reprovável em todas as circunstâncias.

Nada disto invalida que existam alguns ciclistas a ter comportamentos efetivamente reprováveis na forma como interpretam e aplicam as regras de trânsito. E que, tal como os restantes cidadãos, não sejam imunes a regras com conta, peso e medida. Mas não seria útil que o comportamento de uns fosse generalizado ao resto da população – tal como o comportamento pouco cuidado de alguns automobilistas não deve ser generalizado a todos – nem que o comportamento de outros ciclistas seja moralmente avaliado de forma desajustada, relativamente à necessidade de manter a segurança nas deslocações que fazemos.

Por fim, é uma verdade que é bastante delicada a questão de traçar os limites da moralidade, especialmente se ela não coincide com os limites da legalidade. Para resolver este conflito, seria útil adequar a lei à realidade emergente da adoção da bicicleta.