«Defender este espaço»

José Moreno, 62 anos, foi o primeiro morador do Parque das Nações (PN). Foi o primeiro a chegar e, por isso, um observador privilegiado do caminho percorrido até hoje. Assistiu à chegada das calçadas, dos passeios, dos equipamentos e das pessoas. Hoje já são mais de vinte mil os moradores no PN. José Moreno é também a face da Associação de Moradores e Comerciantes do Parque das Nações (AMCPN) que desde 1999 se bate por garantir a qualidade do projecto urbano do PN. Em 2005 juntou-se-lhe um jovem, com vinte e poucos anos, Marco Neves. Este encontro improvável entre gerações resultou num novo impulso para a AMCPN que tem vindo a abraçar novas causas como a da criação da Freguesia do Parque das Nações.

Que motivos levaram a que escolhessem o PN para viver?
José Moreno – Vivia na Portela e precisava de uma casa maior. Tinha duas condições, primeiro que tivesse vista para o rio e depois que ficasse nesta zona. Vim para aqui em miúdo, cresci aqui… em Moscavide, depois na Portela. O meu filho nasceu aqui, era esta a terra dele, era aqui que tinha as suas raízes, os seus amigos e era aqui que queria continuar a viver. Surgiu esta oportunidade e aproveitámo-la.
Marco Neves – Eu não sou de Lisboa, mas morei cá, num pequeno apartamento, enquanto estudava. Depois de acabar comecei à procura de casa em vários sítios. A minha intenção era apenas que fosse em Lisboa ou, pelo menos, perto do centro de Lisboa. Depois de ver várias casas acabou por ser uma escolha quase natural. Não tive a intenção específica de vir para o PN, mas acabei por ser quase naturalmente puxado para aqui. Não valia a pena ir para outra zona de Lisboa.

Na altura que expectativas tinham em relação ao PN?
JM – Na altura em que vim ainda estava tudo em construção, era uma cidade em construção. Trabalhava-se aqui 24h por dia, permanentemente. Assisti à construção da maioria das calçadas da zona norte, dos passeios, à plantação das árvores. Tudo foi feito já na minha presença. Não havia recolha de lixo, tinha que ir levar o lixo a Moscavide, ou quando ia para o trabalho levava o saco e despejava-o algures num sítio de Lisboa onde fosse fácil parar o carro próximo de um contentor… era assim que se vivia!
MN – Esta era uma zona nova e, apesar de tudo, até era aquela com a qual tinha uma relação mais forte. A Expo’98 ocorreu quando vim para Lisboa, tinha dezoito anos. Isso somado ao facto de não ser assim tão mais caro que outras zonas em Lisboa fez com que ficasse aqui. Não gostava de ir para um sítio completamente descaracterizado, um subúrbio. Não sou de cá, não tenho essa relação, por isso não foi nada intencional. Entretanto casei-me e ficámos aqui a morar.

Sendo observadores privilegiados sentiram alguma mudança nas pessoas que ao longo do tempo vieram viver para o PN? No início, provavelmente viriam mais da Portela e de locais limítrofes?
JM – Nos residentes penso que não. As pessoas que vivem aqui são essencialmente de classe média/alta, muitas vieram da Portela e outras vieram de outras zonas, do centro de Lisboa ou até dos arredores. Em termos sociológicos, diria que não vim encontrar aqui um ambiente diferente daquele que tinha na Portela. É o mesmo tipo de pessoas, que fazem o mesmo tipo de vida, que têm os mesmos padrões de vida.

Mas é uma população mais jovem?
JM – A população é efectivamente muito jovem. De resto basta andarmos pelas ruas e vemos que o morador típico do PN é jovem, a média de idades anda entre os trinta e tal, quarenta anos. São casais com filhos novos.

Consegue identificar um momento chave, em que o PN deixou de estar vazio e se começou a aproximar do que é hoje?
JM – Durante a exposição não era permitida a vinda de moradores para o PN por razões de segurança. Antes da exposição apenas vim eu e mais algumas pessoas. Poucas. O PN só começa a crescer depois de Outubro, no final de 98. Vivi no meu prédio, como único morador durante quase um ano. Até costumava dizer na paródia com os meus colegas que vivia numa moradia com sete andares. A partir daí, há de facto uma alteração substancial. Nos primeiros tempos de vida no PN, estávamos disseminados no meio das pessoas que constituíam as delegações, sobretudo na zona norte que era onde estavam todas alojadas. O meu prédio ainda estava em obras assim como a minha própria casa. Na cozinha tinha apenas os armários em cima, não tinha o lava-loiça, o esquentador, o fogão, nada! Nós acampámos dentro de casa.

Com a vinda do campus da justiça para o PN sentiram algumas alterações?
MN – Pessoalmente, foi quando senti maior diferença. Foi sempre tudo muito gradual desde que vim para cá, há cinco anos. Houve crescimento, não tanto na parte da habitação, mas nota-se que há mais gente na rua, nas lojas e nos cafés.
JM – Os tribunais trouxeram para cá três mil e tal trabalhadores, à volta disso. Houve de facto um crescimento.

E os moradores do PN, será que ainda permanecem muito dentro de casa ou cada vez se vê mais gente na rua?
MN – A sensação que eu tenho é de que havia pouca oferta…às vezes também é um ciclo vicioso que pode ser quebrado com mudanças.
JM – Não havia uma oferta tão diversificada como há hoje.

Sentem diferenças entre a Zona Norte e a Zona Sul?
MN – Na minha opinião há uma grande divisão entre o Sul e o Norte do PN. Ao sul do PN continua a faltar qualquer coisa. Os tribunais trouxeram pessoas e movimento à zona norte, principalmente durante o dia. No sul, onde trabalho, sinto que há pouco movimento. Há três zonas no PN: o norte, o sul e o centro. O centro, às vezes, peca por excesso, mas é normal, temos ali um centro comercial que muita gente utiliza; o Norte neste momento está a chegar a um equilíbrio relativamente agradável e o sul ainda está muito aquém.
JM – Há um grande desequilíbrio. Na zona sul o único equipamento de impacto e que pode atrair gente é a marina, mas mesmo assim é muito sazonal. Agora há que puxar para ali as pessoas de novo. A inauguração do edifício Nau poderá ajudar a dar mais alguma vida à zona sul.

Acham que a própria concepção do espaço favorece essa situação?
JM – Tem contribuído. Na zona norte temos largos com esplanadas que favorecem a ida das pessoas, permitem que as crianças brinquem enquanto os pais tomam um café. Temos também o Parque Tejo. Na zona sul os espaços não são tão apelativos, não chamam tanto as pessoas.
MN – O que eu vejo é que as ruas estão muito vazias porque faltam cafés e pequenas lojas que tragam as pessoas para a rua.

E a ligação entre sul e norte?
MN – Não há uma ligação muito forte entre o sul e o norte e é muito difícil haver porque estão muito longe. O PN é enorme e esticado, e não há uma ligação directa em termos de transportes públicos. Não sou especialista nisso, mas talvez aquele eléctrico rápido, de que tantas vezes se fala, resolvesse um pouco o problema.
JM – E depois estamos partidos por uma zona de serviços central.

A abertura da Alameda dos Oceanos não veio facilitar?
JM – Do meu ponto de vista não me parece que ajude muito. Acho que foi um erro porque não está concebida para aguentar um tráfego tão pesado, em termos de volume e de tonelagem.

Qual poderia ser a solução então?
JM – Faria sentido ter aberto a Alameda, mas apenas a trânsito local, nada mais do que isso. O tráfego de atravessamento, em vez de circular pela Avenida D. João II ou pela Avenida Infante D. Henrique, circula pela Alameda dos Oceanos com prejuízo para a tranquilidade do próprio espaço. Este espaço central, do meu ponto de vista, podia ser um espaço essencialmente dos peões, de resto em todas as cidades se está a avançar nesse sentido, de reservar pedaços da cidade para o peão. Aqui quer-se fazer justamente o contrário, fazer o percurso inverso. O que era do peão está a dar-se ao automóvel. Acho que foi errado e não aproxima mais o norte do sul.

Como é que se conheceram?
MN – Já não me lembro bem, mas penso que lhe enviei um email porque tinha feito um artigo para a wikipedia sobre a questão da freguesia. Quando vim para cá comecei a informar-me. Achei estranho, logo à partida, a divisão entre vários concelhos e várias freguesias, mesmo sem pensar nos argumentos a favor ou contra a unificação. Foi a partir daí que nos conhecemos e comecei a colaborar com a associação.
JM – Para mim foi uma surpresa. Vi o artigo e gostei. Pensei logo que era uma pessoa que conhecia os problemas do PN, porque estava espelhado no artigo. Foi uma surpresa porque pensei que fosse o pai dele, uma pessoa mais madura e apareceu-me um jovem de vinte e poucos anos. Isto foi em 2005, na altura ficou logo como suplente nos órgãos sociais da AMCPN.

O Marco costumava ser muito activo neste tipo de associações?
MN – Vivi em Peniche até aos dezoito anos e era activo naquilo em que normalmente são todos os jovens, mas não era especialmente interessado. Até aos dezoito anos, geralmente as pessoas não se preocupam com isso. Na faculdade não participei, porque na associação de estudantes eram mais questões políticas que estavam em causa e nunca me interessei muito por isso.

Não é uma pessoa política?
MN – Do ponto de vista partidário não. Sou muito interessado por assuntos políticos, mas não nesse aspecto. Sempre fui muito interessado em muitas coisas, mas não especialmente em ser activamente responsável por alguma associação. Quando comecei tinha vinte e quatro anos e até essa idade as pessoas não se interessam por este tipo de assuntos.
JM – Foi uma mais-valia a vinda dele porque precisávamos de alguém com garra, juventude e vontade de fazer coisas. Deu um novo folgo à associação, as pessoas vão começando a amolecer e precisávamos de novos projectos e ideias. Ele trouxe isso.

O que é actualmente a AMCPN?
JM – A associação hoje continua a ter a componente que esteve na génese da sua constituição, que se prende com o projecto urbano e a qualidade no PN, e que passa por defender a integridade do espaço em termos de tudo aquilo que foi prometido. Depois temos desenvolvido nestes últimos anos, desde 2006 para cá, actividades culturais e desportivas. Não têm a expressão que gostaríamos que tivessem, mas apesar de tudo, com os poucos meios que temos, tanto humanos como materiais, temos feito alguma coisa de interessante.
MN – Numa zona recente como o PN, as pessoas estão sempre à espera de muito. Sinto que a expectativa, quando nos contactam, é a de que a associação é muito grande. Sendo o PN um bairro grande, novo e supostamente rico, então deve ser uma associação muito poderosa. Às vezes as pessoas contactam-nos quase como se fossemos a Parque Expo, para reclamar.
JM – Em parte essa visão não é totalmente errada. É evidente que não temos os poderes que gostaríamos de ter, mas temos o poder de influenciar e um certo peso que não podemos desprezar. É isso que nos tem permitido fazer algumas coisas. A associação tem algum poder decorrente da expressão que o próprio PN tem a nível nacional.

Que balanço fazem da actividade da AMCPN?
JM – O balanço é positivo, sem dúvida.
MN – Há sempre muitas coisas para fazer, mas às vezes falta o tempo. Não há ninguém a tempo inteiro na associação. Temos muita sorte em termos o Dr. Moreno se não a associação não existia. Ainda temos muito para crescer e para conseguirmos ter uma estrutura que seja mais independente de cada pessoa em particular.
JM – Mas temos que cuidar do futuro.

Que tipo de reivindicações vos chegam? O que preocupa os moradores do PN?
MN – As escolas são a principal preocupação.

E a saúde não?
MN – A saúde não tanto. Estamos a falar de pessoas de trinta, quarenta anos para as quais a saúde ainda não é uma preocupação. As crianças sim. Um casal de trinta e cinco anos com duas crianças pequenas quer pô-las na escola ao pé de casa. Essa é a grande preocupação.

Os projectos já anunciados não são suficientes para as necessidades do PN?
JM – Temos que partir do princípio que estas coisas são planeadas por pessoas entendidas nas matérias, e, se determinaram nos planos do PN que aqui deveria haver quatro escolas públicas, uma das quais secundária, é porque entenderam que faria sentido. Há muito tempo que sentimos falta da escola secundária. Não há, embora estivesse prevista.
M – Em pormenor não sei se chegam. Estamos a falar de um bairro que tem uma população de cerca de vinte mil pessoas. Não consigo saber se, depois de tudo concretizado, as coisas ficarão bem, neste momento não estão de certeza.

Como encaram a questão territorial em jogo no PN?
JM – Não é possível separar o PN que foi concebido como um todo. Na nossa perspectiva não é uma parte de Lisboa e uma parte de Loures. O PN é uma nova centralidade da cidade de Lisboa. Isto é notório, é claro. Estamos a falar de um pedaço importante da cidade de Lisboa. O PN no seu todo.
MN – Aliás uma coisa é o que está dividido no papel e outra é a realidade. Lisboa funciona como uma cidade enorme de vários mi-lhões de pessoas que vivem à volta. Não é só o concelho de Lisboa. A administração local ou se adequa a isto ou não se adequa e está a falhar. Estamos a falar de um pedaço de Lisboa ou da grande Lisboa, se quisermos. Devíamos tentar mudar as coisas para ficarem mais adequadas àquilo que existe.

É esse o vosso grande combate actualmente? A freguesia?
MN – Pessoalmente acho que não é o objectivo. A freguesia é uma maneira de resolver outras coisas.

E o que é que poderá resolver?
MN – Por exemplo as escolas. É evidente que não se cria uma freguesia e no dia a seguir aparecem escolas, mas havendo uma freguesia é mais fácil haver um planeamento a esse nível.

A freguesia só tem importância na obtenção de determinados equipamentos ou também é importante para construir um sentimento de pertença?
MN – Não sendo um objectivo em si é uma maneira de chegar a certos objectivos e um deles é criar a tal comunidade que não existe ainda. Estamos a falar de uma zona de Lisboa nova, se logo à partida começamos a dividi-la em três… Não existindo nada em termos legais que una as três freguesias, quando há eleições autárquicas cada um vai votar na sua freguesia. É muito mais difícil haver um sentimento de que as coisas são comuns, que temos objectivos comuns, que somos uma comunidade. Se até os preços da água são diferentes de uma rua para a outra… Não criar a freguesia é acabar com uma coisa que já existe neste momento. A partir do momento em que a Parque Expo saia daqui, o PN vai dividir-se em três. Ou seja, não estamos a pedir para unir nada, porque isso já está mais ou menos unido na vida das pessoas. Estamos a pedir é para não dividir, para não exacerbar diferenças.
JM – É caso para dizer como dizem os padres nos casamentos – que não se separe o que Deus uniu. Este espaço foi unido pelos deuses. O poder político e o poder autárquico gizaram este espaço, criaram-no. A freguesia garante-nos que a gestão irá ser feita da forma como foi concebida, duma forma única. Temos aqui equipamentos, como as galerias técnicas e o sistema de climatização, que comportam infra-estruturas que têm que ser geridas e mantidas por uma única entidade. Temos também um sistema de recolha de resíduos sólidos inovador e único no país, onde se gastaram milhões de euros e que também exige que haja essa gestão por uma única entidade. Se cada câmara assumir aquilo que lhe cabe, vamos estar a retalhar, a separar aquilo que foi criado com forma e ideia de conjunto, de globalidade. O PN é um todo, não é um espaço concebido em duas partes. A freguesia garante que isso aconteça e, neste momento, é uma premência para nós.

Depois de tantos avanços e recuos qual é o ponto da situação actualmente?
MN – Fizemos uma petição que entregámos no parlamento, em Janeiro. Neste momento está em comissão. Terá de ser discutida no plenário. Já falámos com vários grupos parlamentares e os partidos, em geral, concordam com a criação da freguesia. Dizem sempre que é necessário pensar em duas coisas: a reestruturação da cidade de Lisboa no seu conjunto e não só aqui nesta parte e numa forma de ressarcir o concelho de Loures. Concordamos com as duas coisas, não temos qualquer problema com isso. Em relação à questão de fazer a reestruturação da cidade de Lisboa, também acho que é muito urgente porque temos freguesias com mil pessoas e freguesias com quarenta mil, só que se isso é desculpa para não fazerem esta, então nunca se vai fazer nada. Mais vale começar por algum lado.

Que ideia acham que o PN passa para fora? Para o resto da cidade?
MN – Às vezes há uma ideia errada do PN no resto da cidade, nas pessoas. Criou-se a ideia de que isto é um gueto de ricos portanto não precisam de escolas nem de centros de saúde. Faz-me muita confusão dizerem que é um gueto porque é um sítio onde vêm pessoas de todo o país. Estamos a falar de um bairro que é mais do que aberto, ao fim de semana temos milhares de pessoas aqui. Não está fechado. Se é gueto por as pessoas não poderem comprar casa, vendo bem há zonas muito mais caras do que esta. E depois também há certos mitos que se criaram sobre o PN. Há pouco tempo até ouvi dizer que há uma falha sísmica no PN e que irá tudo ao fundo. Dizem que é um subúrbio e que há um excesso de prédios, que é uma nova Reboleira, já ouvi isto! Qualquer pessoa da Reboleira diria que isso é ridículo, é quase insultar as pessoas de lá. As pessoas têm este novelo de ideias muito vagas que acham que conseguem explicar não sabem bem o quê. Tenho a impressão de que tudo isto acaba
por ser a origem de não termos o centro de saúde, de não termos as escolas…
JM – Na primeira reunião que tivemos com um partido político, depois de estarmos constituídos como associação, veio aqui uma representação de autarcas e um deles perguntou-nos se não receávamos que isto fosse engolido pelo rio… como se isso fosse uma preocupação para os dias de hoje. O degelo, se continuar, algum dia terá reflexos no PN, mas daqui até lá…E estamos a falar de autarcas!