Conversa com…

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Certamente ficou referenciada, para muitos, como “a Ferreirinha”. Grande actriz, produtora, estreia-se, agora, como escritora com “O Mundo Misterioso de Guta”, uma história de afectos, escrita para os mais novos. Filomena Gonçalves foi uma das primeiras pessoas a vir habitar o Parque das Nações, um local por onde sente um enorme afecto ao ponto de servir de inspiração para a sua história. Fica a conversa sobre este seu primeiro trabalho, mas não só…

Veio a caminhar até esta conversa.. costuma passear muito, pelo Parque?
É por fases. Às vezes o quotidiano não permite fazer uma vida tão desafogada como queremos, mas só o espreitar pela janela já dá vontade de ir passear. Este espaço é tão delicioso, calmante e aprazível que merece ser passeado e faço por não o desperdiçar.

Desde quando vive aqui?
Desde 1998. Fui a primeira habitante do meu prédio. A minha filha nasceu em Abril de 1998, a Expo foi inaugurada em Maio e estávamos desejosos de vir para o nosso apartamento porque precisávamos de um quarto para ela! Nessa altura, o PN era um espaço enorme, com uma largueza enorme, muito pouco movimento e com muito poucos estabelecimentos de comércio abertos. Lembro-me que a farmácia da Dr.ª Teresa era um ponto de apoio importante porque a minha filha ainda era muito pequena. Foi uma amizade logo desde o início. Existia a florista, que ainda está aberta, felizmente, e depois a Dona Rosa. E, assim, fomos vendo crescer o nosso bairro, ao mesmo tempo que a nossa família ia ganhando o ninho.

Foram pioneiros…
Fomos… e por isso tenho um grande carinho por esta zona. E por isso, talvez, tenha tentado, nesta minha primeira abordagem à escrita, falar de uma coisa pela qual tenho um grande afecto. De facto, é bom passear por aqui e descobrir os recantos. É como aquele poema de Pessoa que fala do jardim e que ao brincarmos lá somos donos dele. Nós necessitamos de nos apropriar do nosso espaço. Seja em casa, na escola, no nosso bairro. Essa apropriação tem a ver com o uso que damos ao espaço e  isso foi acontecendo connosco. E é sobre isso que este livro tenta reflectir. Com um pouco de imaginário, claro! Até porque os nomes destas ruas, destas praças nos remetem para um imaginário muito rico da epopeia marítima. Esse imaginário é muito estimulante.

Como começou este livro?
Eu, como actriz, tenho feito a minha carreira sobretudo com trabalhos para “gente crescida”, digamos assim. Há uns tempos atrás fui convidada para participar na série “Morangos com Açúcar” e essa experiência foi extraordinária porque contactei, pela primeira vez, com um público muito mais jovem e isso fascinou-me tanto que não quis deixar de perder o contacto com esta camada mais jovem. E o meu objectivo ao escrever o livro era tentar não perder esse contacto com eles. Ao procurar um tema encontrei-o numa zona de conforto, que é o Parque das Nações. Este espaço que, de facto, desperta o meu imaginário.

Sentiu saudades da sua infância?
Em relação a isso acho que nunca crescemos. Acho que se morre sempre com 15 anos. Com essa cabeça de descoberta, de fascínio.

É a pureza que a fascina?
As pessoas mais novas colocam-nos questões, de certa forma são bastante mais amáveis que os ditos adultos porque têm esse olhar limpo sobre as coisas.  E isso é tão essencial… é um oxigénio! E é isso que quero, manter esse contacto com os jovens leitores.

Do contacto que teve com os jovens actores que apreciação faz?
São muito empenhados, trabalhadores e são cabeças muito dignas. Já com muito empenho na profissão que escolheram. Com noção de que não é uma profissão fácil, com vontade de fazer os sacrifícios necessários, com muito profissionalismo. Tenho uma excelente opinião dos jovens actores. E, de um modo geral, penso que posso extrapolar isso para o resto da população mais jovem. Acho que têm a noção das dificuldades que podem vir a encontrar, que o país não é um mar de rosas e que não  podem ter uma atitude predadora em relação ao país. Têm que lhe acrescentar qualquer coisa e é essa atitude de não retirar, mas de dar, que vejo nos mais jovens. Isso é muito belo e traz-me uma esperança para o futuro.

Que posição tem sobre este ambiente de insatisfação, manifestação..?
Sinto-me culpada. Acho que a nossa geração é, de certa forma, culpada. Não me importava de ser eu a pagar. Era importante que se estancasse aqui o dique, mas não me parece que isso esteja a acontecer. E não me parece que seja com manifestações que a coisa se resolva. Penso que tinha que ser com uma conjuntura de coesão, mas, também, de discernimento por parte dos nossos dirigentes. Com alguma clarividência, com algum sentido de entrega à causa pública. É assim que eu entendo a política.

O que falta, então? Ou é utópico pensar que se vai mudar?
É um pouco utópico, sim. O poder tem em si próprio algo que corrompe logo à partida. Mas fazer política é um acto de grande nobreza, de grande discernimento. E o que a política necessitava era disso: recuperar o étimo da palavra ou seja, trabalhar para a Polis. Não de servir a si próprio e trabalhar para a Polis. É o que a política podia fazer.
É engraçado falar em Polis quando toda esta contorção tem precisamente início na Grécia.. como vê o futuro?
Não sou muito optimista em relação a isso. Não acredito que as coisas se resolvam dentro deste paradigma. Teria que haver uma ruptura para se alcançar um outro paradigma. E essa ruptura não a desejo porque parece-me um pouco catastrófica.
Há algum tempo atrás fiquei muito incomodada quando vi o documentário ”Inside Job”. Causou-me uma repugnância tão grande ver as vísceras da ganância que me deixou uma angústia muito grande. Não vejo alterações face àquilo que vi, nesse documentário. O meu receio das rupturas é que quem paga sempre são os mais frágeis, os mais pobres. Vemos isso com a Grécia, Portugal.. As rupturas incomodam-me por isso, porque o poder acaba sempre por ter as suas convulsões, mas resolvem e acabam por ganhar.

“O Mundo Misterioso de Guta”
É a história de uma menina que vem viver para a Expo e que se vê desligada dos seus afectos, da escola onde andava, dos amigos que tinha. Os pais aproveitam o Verão para fazerem a mudança e, como não estão preparados economicamente para irem passar férias fora, ela fica por aqui e resolve explorar o espaço onde vai viver. Encontra uma amiga, uma tágide que lhe propõe um enigma que a vai levar a encontrar outras crianças, que andam pelo Parque das Nações. Crianças que, também, têm o seu mundo, o seu imaginário, um carácter próprio, ocupações diferentes, mas que não deixam de ser um grupo e de se unir à volta deste enigma, que é proposto pela tágide. É uma história de amizades e de afectos.

Como foi escrevê-la?
Foi muito saboroso, límpido e, ao mesmo tempo, levou-me a recordar a minha infância. Há alguns pontos que são recordações da minha própria infância. A heroína tem o nome de Augusta (Guta) que era o nome da minha avó materna, a Tágide tem o nome de Leopoldina que era o nome da minha avó paterna. Tentei criar algumas ligações de afecto, fazer essa pequena viagem e, ao mesmo tempo, dar a conhecer às pessoas, que passam por aqui, que esta zona tem pequenos recantos que podem encontrar.
Fui procurar esses recantos e dois deles são muito pouco visitados. Eu própria não vou lá muitas vezes. O espaço de que mais gosto é onde a Guta encontra a Tágide. É junto ao rio. Acho maravilhoso este encontro entre o selvagem, os sapais do rio, o cheiro a maresia e o jardim, que é um espaço tratado, organizado, relvado, com um método, onde há intervenção humana. E os dois encontram-se. E é esse limbo que acho maravilhoso. Esse encontro do homem com a natureza. Há aqui uma certa mística: a Guta, que pertence ao mundo dos Homens, encontra-se com a Tágide, que pertence ao mundo das ninfas, do imaginário grego. Esse espaço fascina-me e enternece-me.  Adoro o rio, o contacto com a água, a mistura dos cheiros..

Acha que nos estamos a desligar da natureza?
Estamos. Mas este bairro é bom porque conseguimos, ainda, ter alguma ligação com a natureza, com o rio. Lisboa foi toda construída de costas para o rio, não se percebe porquê. Só há pouco tempo é que se começa a recuperar a aproximação ao rio.

O que a inspira?
A minha filha. É a minha fonte de inspiração mais próxima. De resto, inspiram-me as coisas simples. Pela natureza da minha profissão tento manter o espírito aberto para poder observar os outros. E nem sempre coisas boas porque, por vezes, fazemos personagens horrorosas como aquela que estou a fazer agora. Temos que estar abertos a ver as coisas boas e as coisas más. Acho que sou uma pessoa com um espírito aberto. Gosto de observar as pessoas nas suas atitudes. Estou aberta à vida. Nem sempre aproveito tudo, mas tento aproveitar o que ela me vai dando. Sou observadora, por vezes, o meu marido Francisco chama-me a atenção, mas não faço por mal. Pode até talvez parecer grosseiro olhar assim, tão insistentemente, para as pessoas, mas elas causam-me curiosidade. Não é por mal.

Fica desde já o aviso para quem se sentir observada por si..
O que a surpreende?
As pessoas. Essa questão de encontrar uma juventude que me deu tanta força. Essa limpidez no olhar dos mais jovens surpreende-me, todos os dias. Uma coisa que me surpreende e que me fascina: no outro dia fui à farmácia e vinha uma mãe com um bebé muito pequenino. Surpreenderam-me os olhos daquela criança a olhar para a mãe como se ela fosse o sol ou a vida ou tudo! Tudo! Havia na expressão daquele olhar uma plenitude tão grande… Os olhos daquele bebé eram tão infinitos, tão plenos, tão totais que era uma dádiva poder ser olhada daquela maneira. E isso visto no olhar de uma criança é assim uma coisa…

Deixa-a bem comovida…
Comovida, profundamente comovida. Todos já fomos assim. Mesmo aqueles que são muito maus… já um dia olharam assim para a sua mãe… talvez… não sei…
São essas coisas assim muito pequenas, sobretudo os olhares dessas pessoas que me surpreendem, que me fascinam…