Cidade Imaginada

CIDADE IMAGINADA

por:

António-Pedro Vasconcelos, Cineasta

Projecto em curso: preparação do seu próximo filme “Os imortais”.

As cidades de que gosto, onde gosto de passear e onde gostaria de viver, são cidades com história. Mas uma história com que me identifico, uma história que me corre no sangue e na memória. Gosto de Florença, por exemplo, e imagino-me a viver em Florença – mesmo se hoje, com a democratização do acesso ao lazer e a proliferação da oferta turística, o centro histórico da cidade se tornou um Museu apinhado de gente, como a praça de São Marcos, em Veneza, ou, em Roma, a capela Sistina. O que não acontece em Paris, Barcelona, Praga, Roma ou Torino, que são outras das cidades onde eu poderia viver, cidades onde os turistas fazem parte da paisagem, contribuem para fazer delas cidades cosmopolitas, como Nova Iorque, talvez a pérola das cidades do século XX, uma cidade pujante e móvel, que há-de sobreviver, quiçá mais forte, à destruição das Twin Towers, uma metrópole feita à medida dos paquetes e dos aviões (mesmo se pode parecer uma ironia macabra), esses ícones futuristas do século da máquina e da velocidade, capital da liberdade como foi Paris no século XIX, onde confluem e se confundem todos os povos do mundo.
Gosto de cidades assim: vibrantes, acolhedoras, tolerantes, abertas durante vinte e quatro horas, onde convivem burgueses e marginais, artistas e funcionários, nómadas e sedentários, polícias e ladrões. Não sou atraído pelas cidades nem pelos países exóticos, de culturas que não conheço, a que não estou ligado e onde, por isso, nunca poderei penetrar: a Índia, sobretudo, mas também a China, países e civilizações que, no seu íntimo, se mantiveram imunes, durante séculos, à cultura ocidental.
Quero dizer com isto que não acredito em cidades construídas ab nihilo, como Brasília, que é um pesadelo geométrico de betão e espaços verdes, concebida num gabinete, ou em cidades dormitórios, que cresceram depois da II Guerra na periferia de todas as capitais. Acredito, isso sim, nas cidades que crescem naturalmente, em determinadas épocas, cidades à volta das quais nasceu e floresceu uma nova civilização. Nova Iorque, agora ferida pelos atentados, é um dos brazões do século XX, talvez o maior testemunho da pujança e da imaginação dos homens desse século, onde o poder do dinheiro e a imaginação dos artistas, como na Florença dos Médici, souberam conviver.
Não gosto de cidades novas, como não gosto de sapatos novos, cidades sem idade e sem patine, sem rugas e sem história. Gosto de cidades que crescem harmoniosamente, onde o respeito da História inspira a arquitectura, o gosto e as criações do presente, como são Florença ou Paris, Roma ou talvez Londres (cidade fascinante mas secreta, onde nunca, verdadeiramente, penetrei). Lisboa é outro caso: Lisboa é o exemplo de  uma cidade que renasceu, subitamente, de vários anos de desprezo e abandono, e que, de repente, reconquista a sua vocação de cidade marítima, grande porto de partida e chegada de navios do mundo inteiro, onde uma das mais belas praças do Mundo, o Terreiro do Paço, os recebe com hospitaleira majestade, e onde o eco melancólico das sirenes faz ricochete, ainda hoje, nas vielas mouriscas dos bairros de Alfama e da Mouraria. Lisboa, que se tornara, na última metade do século, uma cidade fechada nas suas ameias e nas suas colinas, taciturna e sombria, absurdamente virada de costas para o mar, recuperou a luz, o espaço, a alegria, o movimento ondulante e o colorido que fazem as grandes cidades. Depois das aberrações dos grandes centros comerciais, só possíveis pela desertificação e anemia dos grandes centros vitais – do Terreiro do Paço ao Chiado, dos Restauradores ao Marquês -, Lisboa começa a recuperar a vida nessas zonas que eram o centro nevrálgico da cidade. E, dado importante, volta a ser, depois de séculos de isolamento e desconfiança do estrangeiro, uma cidade cosmopolita, um grande porto, aberto à novidade e à aventura.
Eis outro traço comum às cidades que me atraem e comovem: são cidades marítimas, como é também Istambul, São Petesburgo ou São Francisco, ou cidades atravessadas por rios que trazem nas suas águas memórias de grandes civilizações, como o Arno em Florença ou o Sena, em Paris, cujas águas espelham a luz do sol que declina e douram as fachadas dos prédios quando o dia se despede. Gosto de cidades abertas às chegadas e às partidas, que cresceram a partir do mar ou à volta do rio, cidades em trânsito, cidades que acolhem influências, escondem aventuras e nos reservam surpresas.