«As coisas estão a aquecer»

Aos trinta e dois anos, Ricardo Diniz assume-se acima de tudo como um velejador. Um velejador solitário. Mas é muito mais que isso. É um empresário e um entusiasta de Portugal.  O Portugal Ocean Race, o seu mais recente projecto, foi apresentado no Parque das Nações, porto de abrigo no passado, deste português que um dia resolveu ir de barco oferecer, pelos seus 80 anos, uma garrafa de Porto à rainha de Inglaterra… Por: Inês Lopes

Acha que o mar está no ADN dos portugueses? Quando está a velejar sente essa herança?
Na altura com oito anos não tinha essa noção, embora já tivesse uma noção dos descobrimentos. Não pensava no que isso significava. Cresci fora de Portugal, cresci de fora para dentro, portanto não estive cá. Nunca estudei em português, aliás ainda hoje o meu português não é nada de especial. Sempre fui um cidadão do mundo e quando comecei de facto a perceber o que é que era Portugal no mundo, a dimensão que temos e o protagonismo que tivemos, foi inevitável começar a trabalhar os meus projectos com brio. Cedo percebi que os projectos do Ricardo Diniz, apaixonado pelo mar, que um dia quis ser velejador e que conseguiu. Tinham pouco a ver com o meu desejo interno como cidadão e pessoa, mas com o facto de que já que sou português, tinham que ser feitos de uma maneira diferente, com outra qualidade e cultura. Hoje não sou aquele velejador desportivo dos resultados, não sou aquele que faz regatas ao fim-de-semana e quer ter o barco todo afinado para ganhar a regata. A minha vela é completamente diferente, aliás eu nunca tive um barco próprio, nunca tive um barco meu, continuo a não ter. Eu imagino ideias e projectos e concretizo-os com veleiros que alugo. Isto tem a ver com o que me levou a começar a velejar. Andava com uma mochila às costas a conhecer estrangeiros que passavam pela doca de Alcântara. Todos precisavam das mesmas coisas: gás, mantimentos e peças. Ajudava-os e comecei a lavar os barcos. Ganhava dinheiro com isso, mas ao mesmo tempo ga-nhava experiência. Olhava para os barcos, observava-os e percebia como é que aquilo tudo funcionava. Já velejava na minha cabeça antes de começar a velejar a sério. Foi assim que eu aprendi a velejar.

Consegue dar uma aproximação do que é que se sente no meio do mar? Quando está entregue a si próprio?
Acho que são poucas as pessoas que alguma vez estiveram um dia sozinhos. Verdadeiramente isolados, sem ver ninguém e em silêncio absoluto. Eu, no mar, estive um, dois, dezassete,… quarenta dias sozinho, isolado. Quando estamos sozinhos fluímos, voltamos a ser o mais puros possível. Nesse estado mais puro possível vem muita porcaria ao de cima. Nós, no dia-a-dia, estamos rodeados de porcaria, temos muito stresse, muitos problemas, muitas chatices. Somos completamente bombardeados. No mar eu liberto isso tudo. Nessas ocasiões tenho momentos particularmente tristes em que aquilo que eu nem sabia que lá estava está a vir ao de cima e a ir embora. O mar é uma esponja formidável, leva-te tudo o que é mau e devolve tudo o que é bom. O mar é, de facto, um sítio espantoso…

Já consegue lidar com a sua solidão de uma forma saudável?
No início não era fácil…

Uma vez disse que tinha uma cabeça poética. Já descobriu a poesia das empresas?
A poesia das empresas são as pessoas com quem trabalho. É a relação humana que eu estabeleço com as pessoas. São pessoas que se eu lhes dissesse ama-nhã “ vamos todos dar as mãos e saltar desta ponte”, nem me perguntavam porquê. Esta lealdade da equipa, esta forma de sermos genuínos com o mundo passa e assim se ganham clientes.. Somos poucos, somos bons…temos bons clientes que querem trabalhar connosco. Nas nossas empresas é isso que temos, é essa relação humana muito próxima.

É competitivo. No mar compete com quem ou com o quê?
A competição começa em terra para conseguir patrocínios e apoios para fazer as coisas que faço. Uma vez no mar, há um enorme desafio pessoal. Requer uma força de vontade impressionante. Se calhar sou mais alpinista do que velejador. O João Garcia, quando sobe uma montanha, não está a tentar subir mais depressa do que ninguém. O desafio é com ele, com a postura dele, com a precisão dos equipamentos e do planeamento. A forma como executo e a minha vela é exactamente essa. Claro que se tenho um barco no horizonte começo a olhar para ele e quero agarrá-lo…em qualquer ambiente de regatas somos assim. Mas é a excepção, não é o que me move. Quero compreender melhor o mar, saber superar certas viagens. Compreender o mar foi o meu grande desafio. Sou um curioso das coisas, gosto de perceber o que está à minha volta. A minha competição com o mar é saudável, é compreendê-lo e adaptar-me o melhor que sei. Nunca é natural, nunca é fácil. Estar no mar é muito difícil, muito exigente. Está frio, enjoamos… puxa muito pelo físico.

O que é que pensa nesses momentos difíceis?
Há momentos muito difíceis. Momentos em que adorava carregar num botão e estar numa cama quentinha, tomar um banho. Há um sofrimento físico muito grande, desconforto, medo, dúvida…Quando já estamos nesse limite de cansaço, de exigência, ainda temos de encontrar mais energia, porque se não, não saímos dali  vivos. Isso aconteceu-me quando fiz Lisboa- Dakar por mar porque o piloto automático não funcionava. Eu sabia que aquele piloto não era o adequado, mas queria muito fazer a viagem. Enchi o peito e fui. Pelo caminho comecei a sofrer na pele o que é ter um barco que precisa de um piloto automático mas que não funciona. Olhei para aquilo, calculei o risco… mas em quinze dias dormi dez horas.

Dormindo tão pouco tempo não sente que se está a colocar em risco?
Era um bocadinho exigente, mas eu sabia que conseguia. Quando eu sei que consigo não tenho outra escolha senão avançar. Já me vejo lá e tenho que ir em frente. Eu podia sempre dormir, estava era a ser competitivo porque queria lá chegar em quinze dias. Queria chegar ao mesmo tempo que os carros e os carros demoram quinze dias. Estava a competir com o tempo. A minha mensagem era muito simples, Portugal já esteve em Dakar. Portugal é um país de marinheiros e as energias renováveis são o futuro. Sozinho num barco e demorei o mesmo tempo e gastei vento.

Aos dezanove anos zangou-se com o país por causa de um projecto que não lhe correu muito bem. Actualmente qual é a sua relação com Portugal?
Zanguei-me um bocadinho na altura… zanguei. Mas foi uma escola obrigatória, foi um castigo necessário para aprender o que entretanto aprendi. No fundo, defini o meu caminho. Houve um momento de viragem muito importante. Em 1999 estava a viver nas Caraíbas, comandava um barco e tinha uma vida muito feliz, de-safogada e simples. Depois fui à vela para os EUA e a CNN fez uma peça sobre os nossos projectos que saiu a nível mundial. Recebi centenas de emails de portugueses de todo o mundo, demorei mais de seis meses a responder a todos e naquele momento percebi que não podia mesmo ser eu, eu, eu …o Ricardo fez….não pode ser. É um desperdício imenso. Eu representava algo. A mensagem não podia ser o velejador, tinha que ser o que ele representa e o que ele representa é um país empreendedor, um país com coragem. Um bocadinho esquecido, apagado, que está com a auto-estima em baixo. Mas temos todos, com pequenas contribuições, de puxar por isto. Se eu tenho capacidade com o meu projecto de aparecer na CNN, então tenho influência e tenho poder saudável para usar esse canal para falar de coisas que para mim são mais importantes. Portugalidade, o que é isto de sermos portugueses? É isso que me move, é isso que me dá muito prazer.

Que diagnóstico faz do país actualmente?
Uma das razões porque eu visito escolas, e falo com três mil miúdos por ano, é para lhes contar uma história simples, acessível que é a minha. E se eu do zero consegui comandar barcos nas Caraíbas com vinte e um anos e ter empresas…eles conseguem tudo porque em princípio o sonho deles é muito mais simples, mas o meu não é irreal. Eu tenho uma vida simples, repetível e eles ao verem isso dizem “se ele consegue eu também consigo”. Temos um grave problema de inspiração, temos poucas referências hoje em dia, em Portugal. Quem são as nossas referências na verdade? Temos que investir nessas referências com gestos locais. Os EUA são muitíssimo bons nisso, fazem heróis do nada. É a nossa postura como país, somos um bocadinho mesquinhos, desconfiados, “vai-se andando”… e isso vai ser muito difícil de quebrar. A minha geração e a geração dos meus filhos têm um papel muito importante. Olharmos para este país e pensarmos que temos esta herança chamada vinte vezes mais mar do que terra. Isto é o futuro da economia de Portugal. É mar! Mar, turismo. Mar , pesquisa. Mar, energias renováveis. Está tudo a começar, está tudo a explodir. Está tudo a arrancar, que mais é que nós queremos? Temos uma herança formidável. Temos tanta coisa a nível mundial que podemos aproveitar. Quando estou no mar, tenho medo e frio, mas tenho GPS, cartas de navegação, software, telefone satélite, carrego num botão e vão-me lá buscar passadas umas horas ou um dia ou dois depois. Tenho tudo, mas tenho medo na mesma. Há quinhentos anos, os nossos antepassados enfiaram-se pelo mar adentro com fé, com mangas arregaçadas, com coragem e com ambição. Temos que ir beber a essa fonte para redescobrir essa nossa essência. Nós somos exactamente esse mesmo povo, essa mesma gente e isso não está perdido. Está um bocado disfarçado com o estarmos na cauda da Europa, somos um país pobre…Mas arregacem mangas e acreditem em vocês próprios, temos que acreditar em nós próprios.

Qual é o seu desafio agora? O projecto seguinte ?
As coisas estão a aquecer. Ao longo dos anos já fizemos umas coisas engraçadas. Apercebi-me quando fizemos o projecto “made in Portugal” e o lançámos em 2003. Tinha vários objectivos que queria atingir: promover Portugal, divulgar Portugal, posicionar Portugal e desenvolver a indústria náutica. Isto tudo casa numa só coisa: eventos. Vela, eventos, pessoas, juventude, regata de volta ao mundo em nome de Portugal. A vela não é barata, mas não é só para milionários. Na Nova Zelândia há mais barcos do que pessoas. Em Portugal, teve uma origem muito nobre e isso permaneceu. A Portugal Ocean Race é a minha forma mais esforçada de quebrar um bocadinho isso e mostrar que a vela é para todos. É uma coisa espectacular. O que a vela pode fazer por um jovem… Acho que o desporto pode ser uma ferramenta fundamental para traba-lhar a auto-estima da juventude, para trabalhar os seus valores.

O seu novo projecto é feito para esses jovens?
É abrir, é mostrar mar, é mostrar o que somos. Portugal Ocean Race faz todo o sentido, é tão natural… Toda a gente vai olhar e achar óbvio, elementar. Somos um país de oceanos, de mari-nheiros. O mundo conhece-nos por isso. Isto tudo pode funcionar. Não espero que toda a gente dê as mãos de caminho até Sagres, mas é possível haver união porque somos poucos. Se houver uma comunicação coerente, se as pessoas perceberem o que é que isto é. O mar é o que nos liga a todos. Se todos olharem para o mar no âmbito da Portugal Ocean Race, sentirem que podem participar, sentirem que se podem interligar e viver a regata das mais diversas formas que estamos a proporcionar, vão perceber que vela não é só para ricos. A Portugal Ocean Race, por acaso, é um evento desportivo, mas uma grande parte do objectivo desta regata é uma plataforma para comunicar Portugal e Portugal. Adorava ter três ou quatro equipas portuguesas nesta regata para que Portugal tivesse um foco durante um ano.

E vai ter?
Estamos a trabalhar para isso. Temos dois anos pela frente e quero ajudar qualquer pessoa que queira fazer esta regata, pelo menos para que não te-nham que passar o que eu já passei, a nível de patrocínios e dificuldades. Eu adorava ter dois ou três e há, que eu conheça pessoalmente, dez pessoas em Portugal que podiam fazer esta regata.