Editorial – edição n.º56

Não me canso de me surpreender com a cena final do Godfather. Diane Keaton pede a Al Pacino que diga a verdade, se matou o cunhado ou não. Ele olha-a nos olhos, faz uma pausa, saboreia o experimentar da mentira,  responde-lhe com um “não”. É a oficialização daquilo em que ele se tornou. Naquele olhar temos tudo. A surpresa do sabor da mentira, a consciência do bom que ele é em a usar, o primeiro respirar da metamorfose, o u turn do acto. O poder. Todo o filme pode ser resumido naqueles segundos, naquele olhar. Ela acredita, sorri.  Fica aliviada. Sai. Temos um plano sobre o sorriso dela a caminho dos martinis, seguido de um plano sobre ela em que vemos a alcateia, ao fundo, a começar a rodear o lobo-alfa. Beijam-lhe a mão. Ela vira-se. Vê. Apercebe-se. O sorriso arde num segundo. A inocência transformada em cinzas. Coppola encerra o filme com a porta a fechar-se sobre esse olhar. O olhar dele já nos tinha dito isso. O dela confirma e fecha o filme. O filme resumido num minuto. Sem palavras. Momento Shakeaspeare de Copolla. O homem é mesmo assim. É genial quando uma fracção do filme nos conta a história apenas pela acção.  Mas, hoje, o que me interessa aqui realçar é outro aspecto. Trata-se de uma das maiores obras cinematográficas de sempre. No entanto correu o risco de nunca vir a existir por causa das várias discordâncias que existiam entre os estúdios e Coppola, a nível de casting e não só. Al Pacino era mais que certo para Coppola, mas o estúdio teimava em alguém mais Robert Redford. A insistência de Coppola permaneceu, mesmo com as várias ameaças, ao longo do filme, por parte do estúdio, de fechar  a produção. Filmou cenas e mais cenas com Al Pacino para os convencer. Só conseguia ver Al Pacino sendo o Michael Corleone e não abdicava mão disso, nem por nada. Mesmo nos primeiros dias de filmagens, com todos os cepticismos, ameaças, risos no Plateau, Copolla manteve a sua causa.  
E o que quero realçar aqui, hoje, é apenas isto: a coragem. A coragem de ir contra imposições, de ir pela diferença, de sair do “é mesmo assim”. Coppola, sem saber da dimensão do épico que ia fazer, manteve a sua verdade e fez história, fez algo imensuravelmente belo, infinitivamente grande.
Poderia evocar muitos pedaços de história que foram feitos pela coragem de ir contra o conformismo. Muitas fracções da história nascem, precisamente, da convicção do homem contra o estabelecido. Contra o cliché. Contra o valium existencial. Por vezes esquecemo-nos disso. Talvez por medo… mas medo de quê? A vida é grande de mais para desperdiçar esse crédito. Para não defendermos as nossas causas. Sejam elas de que tamanho forem.
Numa altura, seja ela de impasse económico, histórico, social, político, etc.. é preciso dar um salto em frente. É precisamente nestes momentos que surgem novos ciclos, novas vozes, questionar o antigo, com todo o respeito que possa merecer. E, então, aí, pode ser que, quando menos esperarmos, algo de grande aconteça.
Miguel Meneses